Estava eu um belo dia a ver televisão. Nada de importante esperneava no ecrã. O flatline cerebral estava confortavelmente instalado. O planeta girava, estando-se majestosamente nas tintas para nós. O tempo passava como deve passar quando vemos televisão.
Então bateu-me de repente, como aqueles pulhas na preparatória que nos espancavam o cachaço quando todos, menos o visado da talochada, estavam a prestar a devida atenção: adoro assistir a espectáculos com animaizinhos amestrados.
Não há como ver os fofinhos cãezinhos da PSP, pequenos híbridos pastor-alemão/bófia a correr à volta de obstáculos ou a saltar no meio de aneis de fogo segurados pela outra metade do binómio homem-cão (um conceito verdadeiramente assustador: Hitler tentou fundir Homem e Animal e espalhou-se ao comprido, deixando apenas um legado pseudo-científico e algum material para filmes de série B, mas a nossa Polícia de Segurança Púbica superou-o ao criar um ser de seis patas, altamente domesticável).
Não há experiência comparável ao prazer de assistir a carrosseis de póneis, amarrados em círculo à volta de um poste giratório que, por dias de feira cuja infinita duração faz-me questionar se as leis da física são assim tão rígidas como estas afirmam publicamente (até nalguns diários de reputação duvidosa), levam às costas resmas e resmas de adoráveis pimpolhos, trazidos pelos digníssimos e orgulhosos progenitores para "uma voltinha de pónei", esse outrora nobre ungulado, agora reduzido a testemunha impotente do saudável e progressivo engordar da jumentude dos países (ditos) civilizados.
Não há um número significativo de coisas nas dimensões situadas no mesmo código postal que esta a que chamamos nossa que se comparem ao enternecedor espectáculo proporcionado pelas múltiplas variantes da provocação a bovinos, algo já elevado à condição de arte por alguns países mediterrânicos e por este, que tem a mania que é mediterrânico, mas não é grande coisa, quanto mais mediterrânico. A provocação a bovinos tem uma autêntica panóplia de versões desde as mais softcore como as vacadas (com a versão lolita, usando bezerros, em vez de animais adultos, a ganhar popularidade nos circuitos mais dedicados) ao mais harcore, como a verdadeira tourada a sério, em que o touro é não apenas provocado, mas recebe uma série de sevícias decorrentes da evolução desta arte. O bicho é espetado, obrigado a perseguir gente e cavalos, cansado, gozado, são-lhe retirados pedaços que até fazem falta, como orelhas e cauda, e até acaba empalado na espada de um qualquer pavão humano com a vestimenta mais apaneleirada de que há memória escrita. Quase todos os comportamentos desviantes cá estão presentes, para gáudio de uma multidão em polvorosa: desde o voyeurismo óbvio ao mais sórdido S&M, atingindo até a vertente gore. No fim, o destino é quase sempre o mesmo: o animal é morto (se ainda não o foi) e levado para ser comido, elevando a perversão a níveis raramente vistos. Um autêntico primor da Cultura, devidamente publicitado pela panfletada turística que apregoa a palavra do consumismo turístico imbecil, tão popular desde que terminou (?) a Idade Média.
Não há nada, mesmo nada, como até um circo de pulgas. Realmente fascinante, senhoras e senhores.
Mas admito que há um tipo de espectáculo com animais domesticados/obrigados que me agrada particularmente.
Criancinhas amestradas.
Gerações e gerações de pequenos humanos, nas mais variadas idades antes da adulta, machos e fémeas, a sucederem-se no pequeno e no grande ecrã, nos palcos grandes e pequenos deste esquizofrénico país, entretendo gerações e gerações de outros humanos que se embasbacam com o trabalho que estes miúdos tiveram para aprenderem a cantar, representar, dançar, saltar, correr, nadar, andar a cavalo, etc., e depois uivam o quanto condenam o trabalho infantil, quando um qualquer puto que ajuda o pai na mercearia é menos sacrificado (a que deuses?) do que uma menina que treina nove horas por dia para levar para casa a medalha das Olimpíadas em ginástica rítmica, quando esta poderia perfeitamente, sei lá, ir à escola, por exemplo.
Futuros actores, futuras desportistas, futuros cantores, futuros futebolistas (propositadamente separados da categoria de desportistas - afinal o futebol já não é um desporto há muito tempo, apesar de ainda haver quem se recuse a crer no seu falecimento e posterior ressureição fedorenta como máquina de fazer dinheiro), futuros qualquer coisa, desde que os seus psicóticos progenitores ganhem uns centimozitos com isso.
Só não há espaço para o presente, para serem presentemente aquilo que são: crianças. Mas também, o que é que custa? Pagam um preço, o preço de terem de abdicar, involuntariamente, da infância. Trocos, para nós.
E nós, o que fazemos? Nós que já não somos crianças, que já fomos há muito privados da nossa inocência a ponto de já nem nos lembrarmos de termos sido inocentes, que achamos que lá por não termos tido grande merda de infância nem sequer nos importamos com a dos outros que a poderiam viver como deve ser agora?
Nós? Nós ligamos a televisão...
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