quarta-feira, março 03, 2010

Monte da Azinheira (Tomo V): A água...

Era apenas mais uma fria noite de Inverno. Maria Francisca lavava a roupa do costume, no tanque da vila, como de costume; com o sabão do costume.
Foi de repente que lhe ocorreu - é sabido que qualquer trabalho repetitivo, e que não requeira grande uso das faculdades mentais de cada um, leva ao pior dos hábitos, o de pensar. Ocorreu-lhe que a água era a chave para todos os seus problemas.

Não doeu nada, esta ocorrência. Não a levou a estrebuchar de forma anormal, ou a espumar pela boca como a filha do Manel da Burra quando se lhe davam as sulipampas - “epilépicas” ou lá o que era. Não foi nada que a levasse no dia seguinte a correr a marcar uma visita ao Sr. Doutor. Foi algo de muito mais simples, e, ao mesmo tempo - como só estas coisas “sabem” ser - avassalador.

O que aconteceu, naquela fria e escura noite de Inverno, foi que Maria Francisca pensou (!) Usou, ainda que da sua forma simples e - assaz - descoordenada, todas as suas capacidades mentais. Ligou mais 2 ou 3% de neurónios do que era costume. E fez-se luz na sua cabecinha de aldeia. A água era - de facto - a chave para os seus problemas (!)

A água, que passa, lava, corre, e vai-se embora; Que, apesar de ter sempre o mesmo nome, é sempre uma “coisa” diferente; Lava, passa, e segue em frente. Rio abaixo. Livre pelo mundo. Suja, sim, mas livre (!)

Ocorreu-lhe - na sua cabecinha simples - que a vida das pessoas poderia ser também assim. Que poderiam as pessoas sujar-se, ainda que não por mérito próprio mas tão somente por limpar a trampa alheia, mas que poderiam também ser livres como a água. Livres para correr rio afora, por montes e vales. Livres para poder Ser quem são, moldando-se a tudo por onde passam, mas donas de si mesmas.

As calças do António estavam sujas demais. Aquele homem não sabe que não se pode andar a agachar assim no milheiral só porque lhe apetece. Devia ter mais cuidado. Quem se trama é quem tem de as esfregar, dia e noite seguida, para as poder ter limpas; para que as suje de novo....

A água... essa “coisa” tão simples, e que, de repente lhe deu tanto.

Acabado o trabalho voltou para casa. Como de costume. Mas sempre com a água na sua mente, livre...

O homem não tinha chegado ainda. Devia estar na tasca do Jaquím - como sempre - a beber copo de tinto atrás de copo de tinto - como sempre. Iria chegar a casa, e querer a janta pronta, como sempre.

Chegou-se ao fogão. Não pensou muito. O jantar já estava decidido desde ontem. Era o que havia sobrado. Chanfana de borrego, batata doce no forno, a broa ... do costume. Vinho. Sempre o vinho.

António Maçaroca chegou a casa. Rosado como sempre. Balbuciando sem fim o que o filho do Ti Jaquím havia dito sobre o governo, e os homens da justiça. “Aquele miúdo qualquer dia ainda dá em parvejar e pensar que é Doutor”. “Dou-lhe uma lambada na cara que o cago!”.
E lá bateu a porta, como sempre. Berrou pela janta, como sempre. E sentou-se.

Maria Francisca, de cabeça baixa, chegou-se a ele. Passou-lhe a mão pelo pelo como de costume. “Homem de Deus. Passas a vida nisso. O tinto ainda de mata um dia; e o que será de mim?”. António olhou-a como de costume, levantou a mão como sempre, mas, por uma vez, de bêbado que estava não teve força de a levantar mais do que a altura do gargalo da garrafa. Pegou nela, e disse o que sempre dizia “Comida(!!)”

E ela acedeu... Impávida como de costume. Serena. Trouxe a chanfana, as batatas, a broa. Serviu-lhe o vinho, e voltou costas como de costume.

O lugar de uma mulher - aos olhos de António - é na cozinha. E na cozinha, qual burra na manjedoura deve comer, dormir, e cagar - se possível. “Só saí da cozinha para limpar, servir, e lavar a roupa no tanque (!!)”.
Maria Francisca acedeu, como de costume, e voltou para a cozinha.

Acabado o repasto, arrotos e berraria como sempre, António tentou levantar-se. Mas estava especialmente bêbado nesse dia, pelo que não conseguiu. Sentou-se de novo, e decidiu “passar pelas brasas” - como sempre - antes de ir para a cama; quando fosse um “pouco” mais tarde.

Não reparou ele que Maria Francisca voltava da cozinha, como de costume, mas desta feita não com o tabuleiro de sempre para levantar os pratos, limpar a mesa, e voltar para o seu canto...

A primeira acertou-lhe bem no meio do pescoço. Cortando artérias e músculo. António Maçaroca ainda tentou levantar a cabeça de tanta dor que sentiu; ainda incerto se da bebedeira ou de qualquer outra coisa. A segunda separou-lhe a cabeça do tronco; que caiu aos pés de Maria ainda quente, estrebuchando.

Maria Francisca deixou cair a machada na lenha; o seu sítio do costume. Olhou para o lado - levemente - e saiu porta fora.... como a água (!)

1 comentário:

Jackie disse...

Gostei, mas sinto que lhe falta mais sangue... Esguichos ou algo do género...