quarta-feira, novembro 15, 2006

Memórias: O tempo e os cús quadrados

Como tenho andando um pouco ou nada nostálgico .. aqui vai o primeiro de alguns textos mais antigos que cada vez fazem mais sentido reler - acho que deviamos fazer um blog "Água-com-Gás Memória" ou qualquer coisa que o valha.


"Num certo cú da Europa, havia um povo em que certos indivíduos tinham o cú quadrado. Não porque sofressem de alguma doença hereditária ou de uma qualquer degenerescência do genoma, mas simplesmente porque, decididamente contra qualquer teoria reacionária Darwiniana, decidiram a dada altura, seguir uma liga muito mais conservadora e respeitadora da vontade do individuo, a Teoria de Lamark.

Para estes seres pequeninos, não haveria portanto ordem superior das coisas que lhes viesse meter medo. Eles eram, decididamente, contra todo o tipo de ordem ou de controlo, acima de qualquer designio imposto por uma Lei da Hereditariedade. Que rebentassem os fascizóides que queriam impor a uma pessoa que ela deveria ser como todas as outras e seguir as Leis de Darwin e as evoluções de toda uma população. Ali não se fazia disso, cada um era uma pessoa, e tinha direito de fazer as coisas como desejava.

Como tal, decidindo em colectivo proletário, escrita a acta e ratificada a decisão por votação da maioria do plenário, era a vez de passar à prática. Ficariam os militantes de tal facção, limitados como era a vontade do colectivo, a sentar-se na sua cadeira durante as horas do serviço, e dela não arredar pé (a não ser para as necessidades básicas de cada um, como ir contar um mexerico ao gabinete do lado, ou usufruir das sua hora de pequeno-almoço, das duas horas de almoço e hora e meia de lanche). Como resultado de tal decisão, e passados sensivelmente 30 anos, eis que se vê provada a teoria da adaptação do individuo ao meio, e com subsequente passagem às gerações vindouras. Nem que fosse pelo simples facto de as gerações vindouras ocuparem, cadeira após cadeia, todos os recantos de todos os gabinetes ainda por encher de tais trastes.

E assim se tem passado o tempo, ano após ano. Imutáveis a não ser na sua actividade de enquadrar o próprio cú, estes seres foram esquecendo o propósito de tal norma inviolável. Pararam no tempo em que o cú tomou a forma definitiva da cadeira, e por ali ficaram esquecidos.

O trabalho, esse, faz-se sosinho, porque entretanto, e com o tempo, o cú cresceu, e não se levanta. É vê-los em fila indiana, a picar os cartões de ponto alegremente, com as cadeiras coladas às costas. Já fazem parte deles, as cadeiras. Já fazem parte do vestuário do dia a dia, da farda de trabalho.

O tempo, esse continua a passar, mas aqui não devora nada. A madeira dos assentos torna a coisa difícil de digerir. O coitado nem tem tempo ele próprio para comer um, já logo vem o descendente ocupar o seu lugar. E as cadeiras que cada vez se tornam mais resistentes às dentadas de um tempo, que nesses lugares, parece ser o primeiro a envelhecer de tédio.

Quando por vezes vem alguém a gritar «Basta ! Ao Trabalho ! Levantem-me esses cús quadrados !» é rapidamente silenciado. E nem o susto que prega é suficiente para fazer levantar do assento tais enormidades. Após o susto a vitima é depois acompanhada através de reuniões e plenários onde lhe explicam que é ilegal (sem uma autorização expressa do Ministério do Ambiente Público), afastar do seu habitat natural os indivíduos desta espécie protegida. E que qualquer infractor deverá ter em conta que a multa (já pra não falar da devassa da sua vida privada e profissional) seria muito pesada caso isso se viesse a verificar.

Nem o pobre do tempo aqui terá muitas chances. Resta-lhe encontrar também ele um assento, talvez o mais acolchoada que lho permitam. Recostar-se. E deixar que se transforme o seu cú, também ele num quadrado de meter inveja a qualquer outro."



Johannes Fistaemus
Keeper of Lies (OCT:IX)
(12-04-2004)

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